"Mais facilmente se julgaria um homem segundo os seus sonhos

O Facas, o Carvalho e o Jorge Correia, em Cabinda, em 1974
Eu, o alferes Figueira e o furriel Gomes, fomos dos primeiros a deixar Cabinda a caminho de Luanda, numa fragata da marinha de guerra.
Deixámos o pessoal devidamente instalado no Grafanil e avançámos para Luanda, onde ficámos instalados no Hotel Lisboa, na baixa luandense.
Alugámos um Autobianchi A111 para nos deslocarmos para o Grafanil e para a praia da Barracuda, basicamente.
Cerca de uma ou duas semanas depois, chega o grosso do pessoal e instalam-se também por Luanda com visitas periódicas ao Grafanil.
A determinada altura, houve a necessidade de transportar os nossos soldados naturais de Angola que estavam agregados à 3ª Companhia, ao seu quartel de origem, o quartel de Sá da Bandeira. Vem falar comigo o Figueira e diz-me que o capitão perguntou se não havia voluntários para a missão. Respondo-lhe que não me importo de alinhar caso possa ir à civil e no "meu" carro. Feito... lá vamos nós no Autobianchi a acompanhar as três Berliet´s com o nosso pessoal pertencente ao quartel de Sá da Bandeira, entregá-los no seu local de origem e despedirmo-nos deles. Vão comigo o Figueira e o Gomes.
Arrancámos de Luanda, e dormimos a primeira noite em Nova Lisboa, depois duma estafante viagem, com muito calor e muitos camiões na estrada para ultrapassar.
No dia seguinte saímos bem cedo a caminho de Sá da Bandeira, onde chegámos a meio da tarde e entrámos todos no quartel.
O Figueira dispensa-nos de formalidades a vai com a guia de marcha do pessoal ,fazer a entrega burocrática. Nunca mais os vimos.
Estávamos numa altura de alguma efervescência, com algumas notícias e boatos alarmantes. Lembro-me que veio um alferes do quartel ter connosco e perguntar-nos como estavam as coisas em Luanda, se havia distúrbios ou quaisquer outras movimentações. Dissemos-lhe que não, estava tudo calmo e íamos todos os dias para a praia e para o cinema e as boates à noite.
Bom.. como estávamos ali, aproveitámos para dar uma volta maior no regresso e assim conhecermos um pouco mais de Angola.
Voltámos por Lobito, onde ficámos hospedados num hotel de sonho, o Hotel Términus pertencente ao Caminho de Ferro de Benguela. Um hotel romântico decorado com bambu e com saída directa para a praia....
À noite íamos para o Porto do Lobito para os bares americanos que eram porta sim porta sim. Conhecemos também Benguela.
Quando finalmente nos pusemos a caminho e chegámos à saída do Lobito, deparámos com uma barragem na estrada feita por camionistas que não deixavam passar ninguém, pois estavam a protestar por serem apedrejados nas estradas e queriam que as autoridades os protegessem. Saímos do carro e dissemos que estávamos em missão, que precisávamos de ir para Luanda, que éramos dois furriéis e um alferes apontando para o Figueira.
Os camionistas olharam para nós com desdém e disseram-nos que nem um Major tinha passado, portanto nós também não iríamos passar.
Estávamos à civil e desarmados e lá demos meia volta para o nosso aconchego do Hotel Términus, onde fomos obrigados a ficar mais quatro dias.
Quando finalmente desbloquearam a estrada, arrancámos rumo a Novo Redondo, onde acabámos por permanecer vários dias, pois conhecemos umas deliciosas miúdas que andavam no liceu local e uma delas era recepcionista do Hotel onde ficámos hospedados, na Marginal de Novo Redondo.
Não conto mais pormenores para não cansar muito. Seguidamente fizemos o último trecho da viagem, saídos de Novo Redondo, passámos ainda por Porto Amboím e chegámos nessa noite a Luanda.... cansados mas satisfeitos !!!
O Facas e o Jorge Correia na Roça Lucola (pelo ar de ambos, estavam a aprontar "alguma")
Passados vinte anos, acordo com um pesadelo... tinha sonhado, que juntamente com o Figueira e o Gomes, estávamos formalmente equipados a preceito e a despedirmo-nos dos nossos soldados de Sá da Bandeira com um aperto de mão e um abraço e a desejar-lhes as maiores felicidades para a sua vida futura, pois tinham sido nossos companheiros durante dois anos nas matas.
E, certamente, eles mereciam que isso tivesse acontecido.
Voltei a sonhar com este acontecimento mais umas três ou quatro vezes e acreditem que eu desejaria muito poder voltar atrás e que isto fosse possível de acontecer.
Durante alguns tempos andei pensativo sobre o que teria acontecido com os nossos companheiros de percurso num país a que se seguiu uma guerra civil devastadora.
Bom... um certo dia fui almoçar com o Figueira num restaurante em Lisboa e contei-lhe o que me estava a acontecer.. contei-lhe dos sonhos. Ele desvalorizou o assunto, penso que para me proteger, que não valia a pena pensar no caso e que tinha corrido tudo bem, que não era grave. Nunca mais sonhei com o caso, mas que continuo a pensar que a coisa podia ter corrido de outra maneira, lá isso penso.
O Jorge Correia nos dias de hoje, em terras brasileiras