segunda-feira, 31 de agosto de 2009

LUIANA - 3 MESES DE ISOLAMENTO

(Por Jorge Correia)



"É proibido chorar sem aprender,
Levantar-se um dia sem saber o que fazer
Ter medo de suas lembranças.

É proibido não rir dos problemas
Não lutar pelo que se quer,
Abandonar tudo por medo,
Não transformar sonhos em realidade."
  (fragmento de "É proibido" de Pablo Neruda)



O destacamento do Luiana (foto cedida por Manuel Almeida)
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Serpa Pinto, Julho de 1973:

Estava numa bela tarde de “dolce far niente” no quartel de Serpa Pinto, quando vejo o Figueira (sempre ele) aproximar-se de mim junto com outra pessoa,. Tratava-se do Alferes Miliciano Botelho Moniz pertencente ao quartel de Sá da Bandeira que ia a caminho do Luiana, comandar o destacamento. Apresenta-nos e diz-me que o vou acompanhar a ele (Botelho Moniz) com o meu grupo de combate para reforçar o destacamento do Luiana que tinha uma guarnição reduzida.

Outra imagem do Destacamento da Luiana (foto cedida por Manuel Almeida)
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OK! Já estava habituado a ser eu a alinhar, por ser o mais novo. Logo na apresentação gostei de Botelho Moniz e senti que ele também tinha gostado de mim, havia uma empatia. Colhemos informações um do outro e à noite voltámos a encontrarmo-nos. Percebi que estava algo apreensivo, fomos a um café jogar snooker e ele perguntou-me se eu jogava xadrez e ténis! Respondi afirmativamente e logo me lembrei do sacana do Vidigal que todas as tardes de sábado me ia acordar para ir jogar ténis com ele. Graças a Vidigal aprendi a jogar ténis, mais ou menos forçado e ainda por cima o manguelas do Vidigal assim que aparecia o Major para jogar, punha-me fora e jogava só com o Major.

Óptimo, respondeu Botelho Moniz à minha afirmativa, pois levava na sua bagagem um tabuleiro de xadrez e um par de raquetes de ténis e respectivas bolas. BM era filho do Coronel Botelho Moniz, comandante do quartel de Sá da Bandeira, era uma pessoa afável, elegante e muito educado. No dia seguinte lá embarcámos num avião Nordatlas para Luiana, eu, ele o cabo Silva e os soldados Esteves, Tavares, Marfunha e Chilombo.

Aspecto do Destacamento do Luiana (foto cedida por Manuel Almeida)
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Chegados ao Luiana, fomos recebidos por outro Alferes, Trigueiro de seu nome, três furriéis operacionais, um furriel enfermeiro e um 1º sargento. Tudo gente boa, menos o outro alferes que era um indivíduo truculento, natural de Sá da Bandeira todo armado em alto operacional (estes normalmente são os piores), felizmente Botelho Moniz ia comandar o destacamento. Lembro-me de me ter confessado que estava um pouco desolado, o destacamento era circular, de pequenas dimensões, com um Kimbo também pequeno ao lado e entre os dois uma casa de bom aspecto, porém fechada e desabitada,..esclarecem-nos que tinha pertencido ao chefe de posto, que tinha ido em tratamento psiquiátrico para a cidade do Luso e nunca mais tinha voltado. Tudo perspectivas animadoras, pensei eu.

O destacamento no entanto tinha um ar limpo, havia um campo cimentado de futebol de salão, onde com Botelho Moniz também jogávamos ténis, a messe era conjunta de oficiais e sargentos e a casa dos sargentos era espaçosa e bem arejada, um luxo para as circunstâncias! Á noite, normalmente jogava xadrez com BM depois do jantar, reunia-me com o pessoal do meu grupo nos seus alojamentos e aos sábados íamos ver a festa do Kimbo com danças indígenas muito interessantes pela sua vertente cultural. Certa vez uma miúda do Kimbo ofereceu-se para ser minha mulher durante a minha permanência no destacamento, para isso bastava dar-lhe três panos coloridos, para fazer vestidos. Declinei amavelmente a proposta.

Jorge Correia e Botelho Moniz junto a um dos dois hipopótamos abatidos no Luiana. Estes dois hipopótamos alimentaram o Kimbo do Luiana durante dois meses.
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A vida no destacamento decorria pachorrentamente, fazia questão de a encarar como um centro de estágio, de manhã ia com o meu grupo buscar lenha, seguindo de imediato para a praia fluvial, onde os rastos indicavam que os crocodilos já tinham apanhado sol encaminhando-se para a água, por precaução atirávamos duas granadas para dentro de água antes de tomarmos banho, depois de almoço dormia a sesta e por volta das 4 h havia futebol. Não fazia operações porque não tinha levado a segunda dose da vacina da mosca do sono. Era uma chatice ficar sempre no destacamento, finalmente chegou a vacina e depois de injectada ainda fui a tempo de fazer uma operação a caminho da fronteira com a Namíbia. Uma berliet e dois unimogs, foi fantástico porque no percurso deparámos com imensos animais selvagens de grande porte, Elefantes, Hipopótamos (estes víamos quase todos os dias perto do destacamento) Búfalos, Pacaças, Leões, Zebras e Girafas já muito perto da Namíbia. Eu e o Furriel Filipe íamos de Unimog sentados em cima de dois sacos de areia e o Alferes Trigueiro ia na Berliet sentado em cima de quatro sacos de areia,...é só um pormenor.

A determinada altura um acontecimento chato; numa formatura de manhã ao pequeno-almoço o Alferes Botelho Moniz resolve fazer uma revista ao pessoal que estava de serviço. A propósito de uma alegada má uniformização BM dá uma violenta bofetada em Chilombo que o deita ao chão. Assisti ao acontecimento de longe, pois não estava de serviço e portanto não estava na formatura, mas senti-me humilhado e até ofendido por um soldado do meu grupo de combate ter sido agredido, numa situação em que tal não era de todo justificado. Os ânimos andavam por demais exaltados, Trigueiro era um provocador e já tinha havido pequenas escaramuças com quase todos os furriéis. No entanto a agressão partiu de quem menos se esperava, de Botelho Moniz. Nós sabíamos que Botelho Moniz era constantemente pressionado por Trigueiro para endurecer a disciplina no destacamento o que nas circunstâncias em que estávamos não era de todo aconselhável, só serviria para criar atritos como veio a acontecer. À noite, depois do jantar, tentei falar com o Alferes Botelho Moniz, depois de quase todos terem saído, ele estava a ler uma revista antiga e a beber um whisky e eu aproximei-me perguntando o que na verdade se tinha passado. Botelho Moniz com bons modos disse-me que não queria falar sobre o assunto, pois sentia a cabeça num turbilhão. Respeitei a decisão dele, mas inconformado decidi levar o caso adiante e escrevi ao Capitão, comandante da companhia a contar o que se tinha passado com um dos nossos homens, numa situação que por si só, haveria de levar a uma tentativa de sublevação no destacamento. Todos os furriéis e o próprio Sargento pegamos nas G3 e ocupámos o posto de cripto. Houve um momento de grande tensão. Depois de algumas horas e a conselho do Sargento acabámos por regressar aos aposentos,...não houve qualquer reacção. O Capitão não me respondeu, mas depreendi que tinha feito uma qualquer diligência, pois uns dias mais tarde apareceram no destacamento O Coronel Mendonça, o Capitão Amaro e o Tenente Capelão Geraldes, nenhum deles falou comigo, mas à hora do almoço houve um momento caricato, após uma troca de palavras que não consegui ouvir o Tenente Capelão Geraldes passou uma valente "piçada" ao Alferes Trigueiro,....pareceu-me óbvio o motivo da visita e a sua oportunidade.
Jorge Correia, Brazão, Carvalho e Nogueira no Quartel de Serpa Pinto

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Depois deste episódio, a tensão continuou, mas as coisas ficaram um pouco mais definidas e o Alferes Trigueiro andou durante uns tempos de cabeça baixa, mal falava na messe a Botelho Moniz. Duas semanas antes de me vir embora, Botelho Moniz consegue ir no Nordatlas que nos abastecia de 15 em 15 dias, para o Luso, com o propósito de ir a uma consulta médica,... (antes de embarcar desabafa comigo que já não aguenta viver no mesmo quarto que aquele tipo, (Trigueiro). O Nordatlas voltou 15 dias depois, um dia antes da minha partida, mas chegou sem Botelho Moniz. Trigueiro estava no comando, mas para espanto geral, a comandar sozinho, andava mais pianinho, sabia provavelmente que não seria saudável arriscar-se a invectivar o pessoal que manifestava uma forte saturação e explodiria à menor provocação. No entanto ainda esboçou uma gracinha, quando me disse que era da praxe quem saía, pagar duas grades de cerveja,...sem grande paciência, retorqui que tinha por costume só pagar cerveja a amigos. Na altura, não me disse nada,..mas vim a saber mais tarde que me ameaçou com uma porrada, já depois de me vir embora, enfim, próprio de cobardes! No dia seguinte finalmente chega a minha rendição, antes do almoço vejo vir na minha direcção o meu querido amigo e sorridente Furriel Gomes....o inefável Gomes, o homem da parapsicologia. Apanhámos o avião Dakota pilotado por Sul-Africanos e chegámos à noite a Serpa Pinto. Em Novembro vim de férias ao Puto.
Durante uma operação algures no Cuando Cubango, o Jorge Correia e o Figueira
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Em Novembro de 74, a poucos dias do regresso definitivo, em Luanda, estava numa mesa do Pólo Norte com Figueira, Lopes e Facas e avisto numa outra mesa uma pessoa que me acena com o braço,..era Botelho Moniz, levanto-me e dirijo-me à sua mesa, apresenta-me a sua noiva e um casal amigo, digo-lhe que faltam poucos dias para regressar a casa, finalmente! Não tocamos no assunto Luiana, desejamo-nos mutuamente felicidades. Não soube nada mais dele.

  

Destacamento do Luiana (foto do Manuel Almeida)
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terça-feira, 25 de agosto de 2009

Operações - O Mau e o Bom

(Por António Moita, Fernando Moreira e Luís Marques)

"A morte e a guerra
não mais me pegam ao acaso.
Inscrevo sua dupla efígie na pedra
como se o dado de minha sorte
já não rolasse ao azar,
como se passasse do branco
ao preto e ao branco retornasse
sem nunca me sombrear.
Que venha a guerra! Cruel. Total.
O atómico clarim e a génese do fim.
Cauto, como convém aos sábios,
primeiro bradarei contra esse fato.
Mas, voraz como convém à espécie,
ao ver que invadem meus quintais,
das folhas da bananeira inventarei
a ideológica bandeira e explodirei
o corpo do inimigo antes que ataque.
E se ele não atirar primeiro, aproveito
seu descuido de homem fraco, invado sua casa
realizando minha fome milenar de canibal
rugindo sob a máscara de homem."

fragmento de "Os homens amam a guerra", de Affonso Romano de Sant'Anna

Do álbum de recordações do António Moita, publicamos mais um conjunto de fotografias que documentam a presença da 3ª Companhia nas "terras do fim do mundo", nome dado pelas gentes de Angola às terras do Cuando Cubango.
Estas fotografias retratam eloquentemente o dia-a-dia de uma Companhia operacional e mostram que paralelamente ao "bom" de viver numa cidade como Serpa Pinto, havia também o "mau", das cansativas operações no mato (melhor dizendo, savana) e das intermináveis colunas militares de reabastecimento.

Na savana do Cuando Cubango



O Lopes e o Joaquim Silva

O Alferes Figueira e o 1º Cabo Lopes



Imagem da progressão no terreno



Outra imagem da progressão no terreno


Um ângulo curioso (talvez à espera de um prémio Pullitzer)


O 1º Cabo Pinheiro


O elefante branco era o símbolo do pelotão de transporte do sector SE (Serpa Pinto). Esta foto documenta a largada de 2 Grupos de Combate, o 1º e o 4º, para uma operação da 3ª Companhia (na foto estão o Correia, o Figueira, o Brandão e o Girão. Do lado de cá da objectiva, está o António Moita)



Colunas Militares de Reabastecimento (M.V.L.)

Um momento de descanso durante um MVL. Em primeiro plano, o Vidigal, o António Moita e o Lopes. Em segundo plano pessoal do 3º Grupo de Combate.
Esta Coluna de reabastecimento teve a particularidade da presença do Vidigal, cuja especialidade era "cheirador de chouriços" (inspecção de alimentos). A sua presença deveu-se ao facto do Tenente Coronel, 2º comandante do Sector, num acesso de ciúmes, o ter castigado para que ele estivesse alguns dias afastado de Serpa Pinto.


O mesmo momento. Desta vez o Vidigal em vez de andar a "cheirar chouriços", tirou a fotografia
Operações na savana




Momentos de descanso durante uma operação nas imensas "chanas" das "terras do fim do mundo"




Os rios e as lagoas eram por nós utilizados para a higiene de ocasião. Por vezes com vários dias de intervalo...


“Durante séculos pensei
que a guerra fosse o desvio
e a paz a rota.
Enganei-me.
São paralelas margens de um mesmo rio,
a mão e a luva,o pé e a bota.
Mais que gémeas
são xifópagas,
par e ímpar, sorte e azar
são o ouroboro - cobra circular
eternamente a nos devorar.”
respigado do poema "Os homens amam a guerra", de Affonso Romano de Sant'Anna

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

REENCONTROS - Mais um capítulo

(Por Fernando Moreira)

Tanto tempo à deriva, na fronteira do esquecimento sem a poder nunca atravessar, eis que os caminhos se cruzam.
Ficamos frente a frente e, olhos nos olhos apercebemo-nos que temos bocados de nós que não são nossos.
Permanecem em nós mas foram feitos pelos outros. Pelos que ficam e pelos que vão, pelos que estão sempre presentes e pelos que retornam.
Caminham ao nosso lado e fazem parte da nossa sombra, imutáveis e indissociáveis, como convém… “
(Autor desconhecido – Texto da .net)



Ramalho, Cabral, Girão e o Facas em Vendas Novas (Falta o Fernando que estava do lado de cá da objectiva)


Bom dia,
Tenho aproveitado as férias, tempo em que consigo estar comigo, pois aí o Bruno dá-me alguma folga, para, a par do descanso, conseguir estar com os amigos.
Já estive com o Moita, no seu Kimbo em S. Brás de Alportel, onde gentilmente me mostrou os recantos pitorescos da terra, e onde acabámos por não estar sós, pois telefonou-se a alguns, falou-se de outros e de muitas outras histórias que o tempo não apagou. Assim que abrimos a gaveta das recordações, com páginas mais amarelas ou menos, elas saltam fácilmente cá para fora.

A Igreja de São Braz de Alportel, Kimbo do António Moita

De regresso a Lisboa e e-mails trocados, horas marcadas e muita ansiedade na bagagem lá partimos ontem para o Kimbo do Facas para mais uma sessão de “introspecção colectiva” se é que tal existe... creio que sim!
Cheguei e fui directo ao “Ti Américo” onde me sentei na esplanada a beber um fino traçado e a trincar umas “castanhas-caju”, fim de tarde ameno e calmo como convém àquelas paragens, no caminho o Ramalho, o Girão e o Cabral, e a despachar-se de uns exames o Facas.


A Igreja de Vendas Novas (um dos Kimbos do António Facas)

Mas o Grupo não se ficou por ali; encontrámo-nos no estacionamento do quartel e após dois dedos de conversa seguimos para sermos apresentados ao canito de nome “Samba” e rumámos para o Restaurante das Piscinas de Vendas Novas.

Muita conversa enquanto não chega a hora do repasto


Vocês dirão que é incrível não terem sido tiradas fotos, mas o facto é que a conversa foi de tal modo agradável que as máquinas não sairam das bolsas.
O resto já poderão adivinhar, após muita conversa, boa comida e são convívio chega aquilo que ninguém quer... regressar.
Mas fica a vontade de uma próxima!
Até lá!!!

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Baú de memórias (O meu café!)

(Por Fernando Moreira)

Café em Cabinda

Ramalho, Cabral, Moita e Girão
(foto do António Moita)

Estava aqui a dar uma volta pela .net e dei, como sempre, uma pulada ao "Fórum 4611" e ao olhar para o marcador verifiquei que, mesmo em férias, continua a disparar.

Há dias, estando em conversa com o Moita e na qual entrou também o Vidigal via telefone, ficou-me uma expressão do mesmo em que ele me dizia que nunca teve tanta informação dos tempos de Angola como nos últimos meses.

Sentado no meu sofá pensava em como todos nós decerto já sentimos a falta de passar pelo site do Fórum como se ele fosse o café, o nosso café, onde por hábito tomamos o dito com os amigos ou que por lá passamos com a esperança de encontrar alguém conhecido, neste caso na esperança de encontrar uma noticia fresca.
E é disto que o Fórum vive, noticias frescas...
Portanto meus amigos vamos lá a tomar umas pastilhas de fósforo e a rebuscar no baú das vossas memórias umas historietas do tempo de passagem por terras Angolanas e se puder ser colorida com umas fotos tanto melhor.
Aproveitem as férias para esse exercício.
Alguém disse que recordar é viver, eu digo que também pode magoar, pois sabemos que nem tudo foram rosas mas tudo fez parte... mesmo que seja uma história mais sentida.

PS: Se por acaso tropeçarem com algum site ou Fórum de ex militares que tenham feito campanha em Angola e/ou Cabinda experimentem deixar uma mensagem a noticiar o Fórum 4611 e a perguntarem pelos elementos da 1ª e 2ª. Companhia. Continua a ser estranho não aparecer ninguém.
"Quando voltei encontrei os meus passos
Ainda frescos sobre a húmida areia."

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'

Pegadas (foto de Fernando Moreira)

BATALHÃO DE CAÇADORES 4611/72

BATALHÃO DE CAÇADORES 4611/72
conduta brava e em tudo distinta