sexta-feira, 24 de julho de 2009

Estória de Angola ou será história ?

(Por Jorge Correia)


"Mais facilmente se julgaria um homem segundo os seus sonhos
do que segundo os seus pensamentos"


Victor Hugo

O Facas, o Carvalho e o Jorge Correia, em Cabinda, em 1974


Angola, Agosto de 1974.
Eu, o alferes Figueira e o furriel Gomes, fomos dos primeiros a deixar Cabinda a caminho de Luanda, numa fragata da marinha de guerra.
Deixámos o pessoal devidamente instalado no Grafanil e avançámos para Luanda, onde ficámos instalados no Hotel Lisboa, na baixa luandense.
Alugámos um Autobianchi A111 para nos deslocarmos para o Grafanil e para a praia da Barracuda, basicamente.
Cerca de uma ou duas semanas depois, chega o grosso do pessoal e instalam-se também por Luanda com visitas periódicas ao Grafanil.
A determinada altura, houve a necessidade de transportar os nossos soldados naturais de Angola que estavam agregados à 3ª Companhia, ao seu quartel de origem, o quartel de Sá da Bandeira. Vem falar comigo o Figueira e diz-me que o capitão perguntou se não havia voluntários para a missão. Respondo-lhe que não me importo de alinhar caso possa ir à civil e no "meu" carro. Feito... lá vamos nós no Autobianchi a acompanhar as três Berliet´s com o nosso pessoal pertencente ao quartel de Sá da Bandeira, entregá-los no seu local de origem e despedirmo-nos deles. Vão comigo o Figueira e o Gomes.

Arrancámos de Luanda, e dormimos a primeira noite em Nova Lisboa, depois duma estafante viagem, com muito calor e muitos camiões na estrada para ultrapassar.
No dia seguinte saímos bem cedo a caminho de Sá da Bandeira, onde chegámos a meio da tarde e entrámos todos no quartel.
O Figueira dispensa-nos de formalidades a vai com a guia de marcha do pessoal ,fazer a entrega burocrática. Nunca mais os vimos.
Estávamos numa altura de alguma efervescência, com algumas notícias e boatos alarmantes. Lembro-me que veio um alferes do quartel ter connosco e perguntar-nos como estavam as coisas em Luanda, se havia distúrbios ou quaisquer outras movimentações. Dissemos-lhe que não, estava tudo calmo e íamos todos os dias para a praia e para o cinema e as boates à noite.
Bom.. como estávamos ali, aproveitámos para dar uma volta maior no regresso e assim conhecermos um pouco mais de Angola.
Voltámos por Lobito, onde ficámos hospedados num hotel de sonho, o Hotel Términus pertencente ao Caminho de Ferro de Benguela. Um hotel romântico decorado com bambu e com saída directa para a praia....
À noite íamos para o Porto do Lobito para os bares americanos que eram porta sim porta sim. Conhecemos também Benguela.
Quando finalmente nos pusemos a caminho e chegámos à saída do Lobito, deparámos com uma barragem na estrada feita por camionistas que não deixavam passar ninguém, pois estavam a protestar por serem apedrejados nas estradas e queriam que as autoridades os protegessem. Saímos do carro e dissemos que estávamos em missão, que precisávamos de ir para Luanda, que éramos dois furriéis e um alferes apontando para o Figueira.
Os camionistas olharam para nós com desdém e disseram-nos que nem um Major tinha passado, portanto nós também não iríamos passar.
Estávamos à civil e desarmados e lá demos meia volta para o nosso aconchego do Hotel Términus, onde fomos obrigados a ficar mais quatro dias.
Quando finalmente desbloquearam a estrada, arrancámos rumo a Novo Redondo, onde acabámos por permanecer vários dias, pois conhecemos umas deliciosas miúdas que andavam no liceu local e uma delas era recepcionista do Hotel onde ficámos hospedados, na Marginal de Novo Redondo.
Não conto mais pormenores para não cansar muito. Seguidamente fizemos o último trecho da viagem, saídos de Novo Redondo, passámos ainda por Porto Amboím e chegámos nessa noite a Luanda.... cansados mas satisfeitos !!!

O Facas e o Jorge Correia na Roça Lucola (pelo ar de ambos, estavam a aprontar "alguma")

Passados vinte anos, acordo com um pesadelo... tinha sonhado, que juntamente com o Figueira e o Gomes, estávamos formalmente equipados a preceito e a despedirmo-nos dos nossos soldados de Sá da Bandeira com um aperto de mão e um abraço e a desejar-lhes as maiores felicidades para a sua vida futura, pois tinham sido nossos companheiros durante dois anos nas matas.
E, certamente, eles mereciam que isso tivesse acontecido.
Voltei a sonhar com este acontecimento mais umas três ou quatro vezes e acreditem que eu desejaria muito poder voltar atrás e que isto fosse possível de acontecer.
Durante alguns tempos andei pensativo sobre o que teria acontecido com os nossos companheiros de percurso num país a que se seguiu uma guerra civil devastadora.
Bom... um certo dia fui almoçar com o Figueira num restaurante em Lisboa e contei-lhe o que me estava a acontecer.. contei-lhe dos sonhos. Ele desvalorizou o assunto, penso que para me proteger, que não valia a pena pensar no caso e que tinha corrido tudo bem, que não era grave. Nunca mais sonhei com o caso, mas que continuo a pensar que a coisa podia ter corrido de outra maneira, lá isso penso.

O Jorge Correia nos dias de hoje, em terras brasileiras

(O Jorge Correia, ex-furriel miliciano da 3ª Companhia, vive há 6 anos em São Luís, capital do Estado do Maranhão, no Nordeste brasileiro. Terra de muito sol e calor, como ele gosta. Clima tropical e que ainda proporciona, ao contrário de outras cidades brasileiras, uma vida calma e com baixos índices de violência. Luis Marques)

8 comentários:

José m Francês disse...

E ainda há quem se queixe...
Flizmente que entre nós (4611/72) poucos terão histórias para esquecer.Apreciei a coragem destes três herois feitos à pressa...e numa missão tão dificil !
Claro que não serve de nada estar a pensar hoje, como se deveria ter passado (então ) as despedidas.Seguramente que na altura foram as circunstâncias que impediram que Vocês fizessem o que mais gostariam ... É a vida !
Ficam as belas memórias e o desejo
de que tudo fosse de outro modo!

fmoreira disse...

As recordações, os sonhos e o que poderia ter sido... quem o sabe?
Angola naqueles tempos era um turbilhão. Um abc amigo Correia, venham mais vivências.

Jorge Correia disse...

 Francês e Moreira, obrigado pelos vossos comentários.

Grande abraço!

Luís Marques disse...

“A História é um pesadelo do qual tentamos acordar”

James Joyce “Ulisses”

Ao longo da nossa vida todos nós somos confrontados com situações mais complicadas e nem sempre decidimos da melhor forma. Mais tarde, ao pensarmos nessas mesmas situações, é vulgar pensarmos “se fosse agora teria feito desta ou daquela forma”. Naquele tempo, vocês actuaram da forma que descreves e que foi em parte ditada pelas circuntâncias vividas naquele momento. Passados 20 anos verificaste que poderias ter agido de outra forma, já que era a última vez que contactavas com aqueles camaradas que combateram ao vosso lado durante quase 2 anos e sentiram as mesmas dificuldades e privações, mas também as mesmas alegrias.
A história diz-nos que não foi fácil a vida dos militares angolanos que combateram ao lado do exército português na Guerra Colonial, depois da independência. Não tenhamos qualquer ilusão a esse respeito. Os nossos camaradas angolanos foram perseguidos por todos os três movimentos de libertação, sem excepção. Nem todos, certamente, escaparam à perseguição. A vida foi muito cruel para com eles. Há que ter a consciência disso.
Mas que poderiam ter feito vocês três para alterarem o curso da história? Nada! Apenas poderão ficar com a mágoa de não se terem despedido condignamente deles, mas mais nada para além disso, pois não era possível prever o direcção que as coisas iriam tomar… é essa a tristeza que por certo aflige o Jorge Correia.


Agora uma dúvida que gostava de ver esclarecida: o Jorge Correia diz no seu trabalho que a partida dos militares angolanos da 3ª Companhia de deu no mês de Agosto de 1974, certo? Ora, estão publicadas no Fórum4611 algumas fotos da despedida dos militares da 3ª Companhia de terras de Cabinda (fotos tiradas na Roça Lucola, em Novembro de 1974) e nessas fotos estão muitos militares angolanos. São outros militares?

Jorge Correia disse...

Luís,
Certamente há aí um equívoco,..em 23 de Novembro de 74 embarcámos para Lisboa no regresso definitivo, e o relato que faço no texto da viagem a Sá da Bandeira para entrega do nosso pessoal, deu-se em Setembro ou talvez Outubro de 74.
A referência a Agosto é da nossa vinda de Cabinda para Luanda, onde permanecemos até Novembro, fim da comissão.

fmoreira disse...

Os meus pais mandaram-me para Luanda pouco depois de vocês irem para Luanda e de eu me ter ido despedir ao Ponte-Cais de Cabinda. Em Setembro vim para Portugal. Estas datas batem com as do Jorge Correia.

António Facas disse...

Agora, lembrei-me de uma coisa que no fundo é apenas uma pequena achega para o trabalho do Jorge Correia .
Eu hoje e sempre que falo com ele relembro porque eu sei que a maior virtude de um ser humano É SER O ÚNICO, ninguém no universo será igual . por isso passa-se uma coisa com o Jorge Correia que não conheço em mais ninguém e gostaria de divulgar porque é um pormenor que quase todos da 3ª Companhia se lembram do Correia.
O Correia, quando recebia jornais, revistas ou livros, acontecia uma coisa nunca vista: sentava-se na cama e em vez de ler as noticias que recebia, cheirava religiosamente num grande silêncio todas as páginas que seriam para ele de um elevado interesse como se de uma virgem se tratasse.
Todas essas páginas eram cheiradas religiosamente. Lembro-me perfeitamente que os jornais eram a Bola e o Record, tudo aquilo era cheirado durante toda amanhã e só lá para a tarde é que ela começava a ler.
Todos nós esperava-mos este ritual para também ler as noticias do nosso futebol e do desporto em geral.
Era um verdadeiro espectáculo.

jorge correia disse...

AHAHAHAHAHAHAHAHAH..este Facas também não deixa passar nada..!!!!!

Grande abraço!

BATALHÃO DE CAÇADORES 4611/72

BATALHÃO DE CAÇADORES 4611/72
conduta brava e em tudo distinta