7 de
Dezembro de 1974.
Esta
data poderá nada significar para quase todo os ex-militares do Batalhão de
Caçadores 4611/72.Porém ela significa muito para 4 desses ex-militares, mais precisamente para o autor desta mensagem e para os ex-furriéis milicianos Carlos Alberto Aleixo Afonso (1ª Companhia), Manuel Duarte de Almeida (2ª Companhia) e Vítor Manuel Fernandes (3ª Companhia).
No passado dia 7, Domingo, à noite, fui surpreendido por um telefonema do Carlos Afonso que me disse: “Ó Luís, sabes que hoje faz 40 anos que chegámos de Angola?”.
Confesso que tal já me tinha ocorrido fugazmente durante o dia, mas ao ouvir o Carlos Afonso recordar-me esse facto, pensei para comigo: “Esta data não tem só a ver comigo. Ela tem a ver com outros camaradas meus que gostarão de ver comemorada a efeméride”.
É verdade, no dia 7 de Dezembro de 1974, nós quatro finalmente chegámos a Lisboa, já toda a gente do Batalhão estava cá à “uma eternidade”…
E
qual a razão deste regresso tardio? Nós fomos “os desgraçados” que ficámos encarregues
da expedição, da receção e do encaminhamento das bagagens dos militares das
respetivas Companhias.
Inúmeros
caixotes com aquilo que cada um resolveu trazer como recordação dos dois anos
passados em Angola.
Os
oficiais tinham direito a um caixote com 1,5 m3, os sargentos podiam
trazer um caixote com 0,75 m3 e aos cabos e soldados era permitido
transportar um caixote com 0,5 m3.Dentro de cada caixote vinha toda uma parafernália de objetos e “coisas”. Tudo aquilo que lá cabia e que cada um achava que devia trazer. Os oficiais e sargentos traziam algumas das garrafas de bebidas que fizeram parte da dotação mensal que lhes cabia (garrafas de whisky novo ou velho e garrafas de licores estrangeiros – as que não foram lá consumidas entenda-se).
Depois
cada um meteu dentro dos seus caixotes aquilo que lhe foi possível adquirir ao
longo de dois anos de Angola. Artesanato, loiça, etc. (neste etc. estava
incluído o famoso “pau de cabinda”, bem como - mais rara ou não generalizada -
alguma liamba).
Enfim,
dois anos de Angola “encaixotados” e prontos para serem embarcados foi aquilo
que cada um nos confiou, para depois lhe entregarmos já aqui em Lisboa.Os furriéis encarregues da bagagem de cada militar a ser expedida para Portugal, vinham com alguma antecedência em relação às respetivas Companhias, para que quando elas chagassem a bagagem de cada um que não podia ser transportada por avão, os tais caixotes, fossem entregue logos de imediato após a chegada das Companhias. Era assim há muito tempo.
Esta certeza (de regressar com alguma antecedência relativamente aos restantes camaradas – havia relatos de “bagageiros” que regressaram com quase dois meses de antecedência) levou-me a oferecer-me voluntariamente para a tarefa. Não sei se com os restantes três se passou a mesma situação, mas tanto quanto me recordo pelo menos um ou dois foram nomeados, como foi o caso do Carlos Afonso. O Vítor Fernandes creio que antes da tropa trabalhara num despachante, daí ter sido considerado apto para a missão.
Mas
as coisas não correram bem como nós imaginamos. E aí funcionou uma velha máxima
muitas vezes ouvida desde os tempos da nossa recruta: Na tropa nunca te
ofereças para nada…
Com
o tempo próprio para o despacho das bagagens a passar bem depressa e ainda com as
4 Companhias em Cabinda, mas já numa fase de “descompressão”, começámos a
compreender que as “coisas” poderiam não correr tão bem como nós quatro
desejávamos. Ouviam-se rumores diários que os navios da marinha mercante portuguesa – os únicos onde a bagagem dos militares poderiam ser transportadas, por tal carga ser considerada “bagagem militar” – zarpavam de Luanda já bem carregados e nem sequer ancoravam no porto de Cabinda, dado não terem espaço para carregar a bagagem do 4611/72.
Os
boatos bem depressa se transformaram em certezas: tão cedo não passaria
cargueiro com bandeira nacional no porto de Cabinda.
E é
neste cenário, para nós quatro impensável, que, sem nada podermos fazer,
assistimos impotentes e pouco serenos à saída das quatro Companhias do Batalhão
com destino a Luanda, para de lá regressarem definitivamente a Portugal.
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Imagens da 3ª Companhia a sair de Cabinda no final de Outubro, princípios de Novembro de 1974 |
Os
dias seguintes foram passados entre a Capitania do Porto de Cabinda e o Comando
de Setor a tentar ouvir a notícia tão desejada: vem aí o navio “tal” para
carregar as vossas bagagens. Só que os dias foram passando e a notícia mais
apetecida não nos era dada. Antes pelo contrário. As informações eram
exatamente contrárias aos nossos desejos e já se apontava para meses – leram
bem meses – de espera. De espera pelo “tal” navio que um dia haveria de fundear
ao largo do Porto de Cabinda para carregar as nossas bagagens que permaneciam
arrumadas no Cais.
Desespero
absoluto perante a perspetiva do pesadelo de termos de aguardar meses (ninguém
sabia dizer quantos…) pela chegada do “tal” navio.
A
nossa tropa já há muito em Luanda e alguma já em Lisboa… e nós com os olhos
“pregados” no horizonte à espera, em vão do “tal” barquinho. Os dias pareciam
mais longos e a tristeza e a desesperança apoderavam-se de nós.
Foi
por esta altura que eu e o Carlos Afonso nos tornámos mais próximos, pois
éramos nós dois quem, supostamente vivia aqueles infindáveis dias dramáticos de
forma mais intensa. O Duarte e o Vítor Fernandes pareciam mais conformados com
a situação (um deles, não sei bem qual, chegou a dizer-nos: ”não me ralo. Quando quiserem que venham
buscar os caixotes”).
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Saída de Cabinda das tropas do Batalhão de Caçadores 4611/74 |
Num
dos últimos dias de Novembro, ou nos primeiros dias de Dezembro de 1974, chegou
ao Porto de Cabinda um navio de carga italiano (de nome Alberto “qualquer coisa”
– recordo o nome Alberto por ser o nome do meu pai), cuja rota programada era
Lisboa. Mais: esse cargueiro italiano ia zarpar dentre de dois dias
completamente vazio! Só que era um navio estrangeiro e a “bagagem militar
portuguesa” não podia ser carregada num navio com bandeira estrangeira….
Resultado do “orgulhosamente sós” de Salazar.
O
meu desespero e o do Carlos Afonso levou-nos a tomar uma decisão inédita:
prometemos a nós próprios fazer “explodir” as NEP’s (Normas de Execução
Permanente”) e embarcar os caixotes no navio italiano!
De
imediato entrámos em contacto, através da Capitania do Porto de Cabinda, com o
comandante do navio italiano que acedeu (após consulta feita junto do armador)
em fazer o transporte, ultrapassadas as questões principais como a questão do
pagamento do transporte e outras que para nós eram estranhas.
Contactámos
o Duarte e o Vítor Fernandes para os quatro “desgraçados” em conjunto irmos
falar com o Comando de Setor no sentido de procurar a necessária autorização
(não sabíamos de quem, mas era preciso vir a autorização superior) para que os
caixotes fossem embarcados no cargueiro italiano que estava prestes a zarpar em
direção a Lisboa, totalmente vazio. Mas o Duarte e o Vítor Fernandes não se
quiseram meter em sarilhos e desde logo descartaram qualquer presunção de
atuação conjunta.
Mas
o Carlos Afonso e eu não desistimos: tomámos o caminho do Comando do Setor de
Cabinda e após dizermos qual o nosso propósito, levaram-nos à presença de um
major, cujo nome não me recordo.
Após
longa discussão sobre os nossos intentos, ouvimos um sonoro NÃO e levámos uma violenta
“piçada” e uma reprimenda autoritária: “Os nossos furriéis não estão bons da
cabeça! Mercadoria militar só em navios com bandeira portuguesa! Têm a
obrigação de saber isso! Fora daqui e aguardem o tempo que for preciso pela
chegada de um cargueiro português!”. Chamou um PM e ala moços! Expulsos do
Comando de Setor…
Desistir?
Impossível! Tão forte era a nossa determinação. Entretanto fomos informados na
capitania que o cargueiro italiano zarpava no dia seguinte.
Veio
então a decisão amalucada de armar “maca” junto do Comando do Setor.
Completamente “enlouquecidos”, pirados, tresloucados, ou lá que quiserem
chamar, tomámos a resolução de rumar até lá e se fosse necessário pela força
das armas forçar o tal major a contactar alguém superior, em Luanda, em Lisboa,
junto do Américo Tomás ou do Marcelo Cetano, fosse de quem fosse, para que
viesse a autorização para o embarque dos caixotes!
À
entrada do edifício fomos barrados por um furriel que nos queria impedir de
entrar, cumprindo ordens do tal major (havíamos informado que voltaríamos). Não
teve sorte o nosso furriel e foi completamente arredado do caminho. Galgámos as
escadas até ao primeiro andar e entrámos de rompante pelo gabinete do major
adentro, que em vão nos deu ordem para nos retirarmos (penso que chegou a dar
voz de prisão). Não estava era a contar com a nossa determinação e do ultimato
que só dali sairíamos depois de obtida a autorização, nem que fosse do próprio
Deus, para o embarque dos caixotes com a “tralha” junta pelos militares do
4611/72, há muito tempo já na peluda.
Depois
de uma acalorada troca de “argumentos”, o major acabou por aceder em mandar uma
mensagem para Luanda com o relato da situação e pedindo solução para a mesma.
Nós
dois ficámos a aguardar… não abandonámos as instalações do Comando do Setor de
Cabinda, pois o tempo voava… e o dia de amanhã era já “hoje”.
Passadas
algumas horas (sei lá quantas, a mim pareceu-me uma eternidade…) e quando já
começávamos a perder a pouca esperança que ainda nos restava eis que o major
veio com a notícia por nós tão desejada: “O
Alto-Comissário em Angola, almirante Rosa Coutinho, deu-me instruções para
tratar do embarque das bagagens dos militares do vosso Batalhão no cargueiro
italiano. Vou cuidar disso, convocando de imediato o comandante do Porto de
Cabinda”.
A situação
dramática em que nos encontrávamos desde o final de Outubro de 1974, num
repente, desanuviou-se e encheu-nos de alegria contagiante. Logo as garrafas de
Nocal ajudaram a celebrar a vitória que tanto nos tinha custado a alcançar.
O
Almirante Rosa Coutinho, o “Almirante Vermelho” como lhe chamávamos, assumiu o
cargo de Alto-comissário para Angola em Outubro de 1974, após a demissão do
último Governador-Geral de Angola, General Silvino Silvério Marques, ocorrida
em Julho.
O
cargueiro italiano teve assim de adiar a saída de Cabinda por mais um dia, a
fim de possibilitar o embarque dos nossos caixotes. E à boleia levou outra
carga que não a nossa. Saiu de lá bem cheio em rota direta para Lisboa.
Caixotes
carregados, nova tarefa: tratar de arranjar embarque no aeroporto de Cabinda em
direção a Luanda o mais depressa possível. Mas aqui as coisas correram de
maneira diferente, para melhor e dois dias depois de o navio partir, estávamos
em Luanda. A pressa em abalar foi tanta, que não ouve sequer tempo de nos
despedirmos da bela terra de Cabinda. Os últimos dias foram de tal maneira
complicados, que pensámos nunca vir a sentir saudades.
À
chegada a Luanda tínhamos à nossa espera o Capitão Manuel Ferreira Júnior
(ficara em Luanda, não acompanhando a Companhia por motivos que não me recordo)
e que já estava ao corrente da odisseia em
terras de Cabinda, mas estava mais preocupado com as consequências do
“sequestro” à força do major e da “tomada de assalto” do Comando de Setor de
Cabinda. “Ó home, o que vocês foram
fazer?” – dizia ele na sua típica pronúncia açoriana. – “Estão convocados para serem interrogados na
PM de Luanda”. Só que não fomos! Ninguém nos veio buscar e nós também não
aparecemos lá pelo nosso pé… Fomos, isso sim, até ao Quartel-general da R.M.A.
tratar da viagem de regresso ao “M’puto”!
Também
aqui tudo correu pelo melhor. Creio que dois dias depois já tínhamos lugar
assegurado num “Jumbo” da TAP com destino a Lisboa.
Lisboa,
onde chegámos cerca das 8 horas da manhã do dia 7 de Dezembro de 1974.
Mas,
como tivemos de aguardar pela chegada do cargueiro italiano (não me recordo da
data em que o mesmo chegou) e da receção dos caixotes, ficámos colocados no
chamado Depósito Geral de Adidos, na Calçada da Ajuda em Lisboa. Quer dizer:
vocês já a gozar a “peluda” e nós já promovidos a 2ºs sargentos, a tratar da
entrega ou expedição dos malfadados caixotes…
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Porta d'Armas do Depósito Geral de Adidos, em Lisboa (calçada da Ajuda) |
Para
concluir, resta dizer que a nossa passagem à “peluda” só ocorreu em Abril de
1975,no R.I. 16 em Évora, onde finalmente entregámos a identificação militar,
nos entregaram um papelinho qualquer que atestava a passagem à “peluda” e
fizeram as contas finais daquilo que nos era devido por mais cinco meses de
tropa.
Se
deixamos aqui este extenso relato sobre o desditoso final de comissão destes
quatro elementos do Batalhão de Caçadores 4611/72 é apenas para vocês saberem
que as recordações de Angola que “encaixotaram” nuns bocados de madeira em
Cabinda (e que segundo alguns se queixaram não chegaram completas aos seus
remetentes e destinatários, ou então chegaram com peças danificadas), sem
qualquer culpa vossa, diga-se, custaram mais cinco meses de tropa a mim ao
Carlos Afonso ao Duarte e ao Vítor Fernandes, para além de muita dor de cabeça
e aventureirismo.